Talvez seja difícil imaginar a pintora Tarsila do Amaral, autora do quadro “Abaporu”, uma das obras mais valiosas da história da arte brasileira, como uma solteira. Por mais de uma década, porém, era assim que a sociedade paulistana a via e, por isso, a evitava.
O livro “Tarsila — Uma vida doce-amarga” (Ed. José Olympio, 143 págs.)da historiadora Mary Del Priore, mostra esse lado da vida da artista que poucos conhecem. Em entrevista, ao Metrópoles a autora explica:
“Tarsila se separou do primeiro marido muito jovem. Foi um casamento arranjado com um primo, que fugiu com outra mulher. Naquela época, não havia divórcio e a anulação do casamento demorava anos para sair. Não havia espaço para uma mulher separada na sociedade paulistana nos anos 1920. Ela estava fora dessa caixa e era vista como uma solteira.”
A historiadora escreveu texto para ser um audiobook, lançado pela Storytel em 2022. A convite da editora José Olimpio, a biografia ganhou edição em livro em janeiro deste ano. Na versão impressa, há um encarte com fotos da artista e reproduções de notícias de jornal.
No livro, a autora explora as relações pessoais de Tarsila, que se casou quatro vezes — e pasmem: foi ignorado pelos quatro companheiros. O casamento em que Mary mais se aprofunda é o com o escritor Oswald de Andrade.
“Quando ela se apaixona por Oswald, é um desabrochar aquela mulher sensual, a mulher com desejos”, diz a historiadora.
Entre 1922 e 1929, enquanto manteve uma relação com Oswald, é o momento mais rico da produção de Tarsila. Época em que produz as telas da fase Pau Brasil e Antropofágica, inaugurada pelo “Abopuru”, de 1928.
Para a autora, além da paixão, o casamento com a pintora era conveniente ao escritor, que também não era lá muito bem-visto pela elite paulistana. “Embora fosse rico, não era bem recebido na sociedade, que o considerava um oportunista”, conta.
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O livro também detalha a relação de Tarsila com a artista Anita Malfatti, com o escritor Mário de Andrade e com familiares. Durante a leitura, descobre-se que a vida de Tarsila teve mais dores do que glórias.
Confira os principais trechos da entrevista:
Antes de ser um livro físico, você o escreveu para ser um audiolivro. Escrever um texto para ser ouvido foi diferente?
Quando você escreve um livro, você sabe que existem: o autor, o livro, e o leitor. Eu sempre me coloco na pele do leitor evitando um palavreado pesado e muito acadêmico — o que impede que as pessoas leiam com leveza. Faço sempre questão de que os meus livros tenham uma excelente pesquisa histórica, mas que sejam prazerosos de ler. No caso do audiolivro, procurei me colocar no lugar de alguém que escuta. Eu pedi para a editora colocar uma narradora que falasse francês direito. A pronúncia francesa que foi uma constante na vida de Tarsila. Se isso não tivesse qualidade, poderia ser ruim.
Livro Tarsila – uma vida doce-amarga, de Mary del Priore
Livro Tarsila – uma vida doce-amarga, de Mary del Priore
reprodução
Autorretrait ou Le Manteau Rouge (Autorretrato con abrigo rojo), 1923. Óleo sobre lienzo. Coleção- Museo Nacional de Bellas Artes. 73 x 60 cm. (28 3:4 23 1:2 pulgadas). Rio de Janeiro.
Autorretrato Manteau Rouge, 1923.
Reprodução / Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro
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Tarsila do Amaral na exposição da Galerie Percier, Paris, julho de 1926. Fondo Mário de Andrade. Arquivo- Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
Tarsila do Amaral na exposição da Galerie Percier, Paris, julho de 1926.
Aquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral a bordo de um navio Foto- Crédito- Fundo Oswald de Andrade : Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio
Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral a bordo de um navio
Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio
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foto preto e branco tarsila do amaral
Tarsila do Amaral
Reprodução fotográfica Correio da Manhã / Acervo Arquivo Nacional
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No livro, embora não tenha como verificar algumas hipóteses, você sugere muitas possibilidades do que poderia ter pensado em alguns momentos. Por que você decidiu deixar algumas perguntas em aberto?
Eu tenho muita intimidade com estudos sobre mulheres nesse período. Isso me deu muita facilidade para, de certa maneira, despir Tarsila desse mito dos autorretratos pintados com brincos grandes, aquela boca vermelha e vestido vermelho do estilista francês Jean Patou. Esse conhecimento me permitiu comparar a vida dela com a de outras mulheres que viveram na mesma época. Digo sempre que a comparação é a varinha de condão da história. Como eu conversei com os personagens e o contexto histórico, deu perfeitamente para sugerir algumas coisas a partir justamente do que era um comportamento de grupo social.
Como foi o processo de pesquisa para o livro?
Tarsila não deixou nada escrito. As pessoas que conviveram com ela estão mortas. Então, eu não tinha quem entrevistar. Resolvi ir para os jornais porque ninguém nunca mexeu com o que o noticiário dizia sobre a artista. Isso me possibilitou fazer um retrato novo de Tarsila, mostrando todas aquelas dolorosas que ela viveu. Os sofrimentos são profundos. Uma mulher dorme quatro vezes por diferentes parceiros. Isso é muito doloroso. Ela também perdeu a neta de uma maneira trágica — a menina era campeã de natação e morreu tentando salvar uma amiga que estava se afogando e acabou afogada também. A filha [Dulce]poucos anos depois, morreu em consequência de diabetes, que na época não tinha tratamento como há hoje.
Impressiona muito, no seu livro, ver que Tarsila sofre tanto e não se revolta, não grita, não xinga… Não houve um momento de revolta?
É uma pequena fórmula burguesa que existiu nesse período para essas mulheres. Tarsila era uma pessoa muito boa, de uma beleza extraordinária. Todo mundo que conviveu com ela dizia isso. Nunca deixou de ajudar as pessoas, mesmo quem as abandonou, incluindo os ex-maridos. Dá uma impressão que ela sempre vê as dificuldades pela fé. Tarsila sempre estudou no colégio de freira, o que deu a ela essa disposição de ser uma pessoa generosa que não perdia a fé. No fim da vida, estabeleceu uma relação com Chico Xavier e com o espiritismo — uma religião que dá um consolo muito grande para quem perdeu alguém.
Há poucas biografias no Brasil que abordam a vida dos nossos artistas e a crítica de arte recebe muito mal geralmente esses trabalhos. Porque?
Há uma incompreensão do papel dos historiadores. Os historiadores mostram os fatos e os vazios. Deixa abertas as lacunas para o leitor suportar, preencher e chegar às suas elaboradas. O que eu não faço é vida de santo. Porque acho que tem de mostrar exatamente essas pessoas, pois é o que aproxima a personagem das pessoas.
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