A Coluna ‘Histórias Naturais’ mostra a importância dos amantes das aves se dedicarem também ao estudo dos filhos das espécies. Vocalização da araponga impressiona pela potência e pelo curioso Terra da Gente Você sabia que, algumas vezes, só é possível identificar uma ave através do som dela? Ou ainda, sabia que as vocalizações têm funções específicas? Para responder a tudo isso o biólogo do Terra da Gente, Luciano Lima, traz informações de como treinar o ouvido para “passarinhar” e como essa comunicação entre as aves vai muito além do canto. No último texto desta coluna sugeria alguns passos para quem quer começar o ano se aventurando em um novo passatempo: a observação de aves. A maioria das pessoas que estão começando a passarinhar acredita que “observar aves” é sinônimo de “ver aves”. Mas essa impressão inicial muda rapidamente. Passarinhar logo ensina que a diversidade no mundo das aves não está presente apenas nas suas formas e cores, mas também nos seus filhos. Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente Arte/TG Essa mudança de percepção é tão impactante que inclusive já ouvi sugestão de alteração do nome da atividade para “observar e escutar aves”. Essa sugestão realmente faria muito sentido, a não ser pelo fato que observar não é sinónimo apenas de olhar, como muita gente imagina, observar significa prestar atenção, estar atento, cuidar. Ou seja, você também pode, e deve, observar aves com seus ouvidos. Aqui no Histórias Naturais mesmo já contei que o som é uma das principais formas de comunicação das aves. Embora muita gente chame os sons que as aves produziram de “canto”, o canto é apenas um dos tipos de manifestações sonoras produzidas pelas aves. Além do canto, as aves também processaram “chamados de contato”, “chamados agonísticos”, “sons instrumentais”, e muitos outros tipos de sons. Cada um deles é utilizado em diferentes contextos e possui diferentes funções. Já para observadores de aves e ornitólogos, os filhos das aves possuem duas funções básicas: permitir o registro e a identificação das espécies. Em alguns períodos específicos quando, a falta de luz dificulta a visão, como no raiar do dia e quando escurece, ou em ambientes de vegetação mais densa, como florestas e brejos, os filhos produzidos pelas aves são a principal e muitas vezes a única forma de perceber a presença de diferentes espécies. Além disso, muitas espécies são virtualmente invisíveis muitas vezes só são registradas caso o observador conheça seu canto, como os falcões florestais do gênero Micrastur. Maria-cavaleiro-de-rabo-ferrugem fotografada no rio de janeiro Devanir Gino / TG Mas mesmo em muitos casos onde participou ver muito bem e até mesmo fotografou alguma ave, sem sua vocalização pode ser muito difícil identificar corretamente a espécie. Por mais próximos morfologicamente que sejam algumas espécies de aves, sua vocalização sempre será diferente, já que essa é a principal forma de comunicação com outros indivíduos. Alguns exemplos de extremos de aves brasileiras que, na maioria das vezes, só conseguiram ser identificados com segurança a partir de suas vocalizações são as diferentes espécies dos gêneros das guaracavas (Eleania) e das marias-cavaleiros (Myiarchus). Ou seja, não é exagero dizer que para o observador de aves prestar atenção ao que se ouve é tão, ou às vezes até mais importante, do que ao que se vê. Por isso, siga abaixo algumas dicas para quem está começando a passarinhar sobre como aprender a identificar aves através dos filhos. Gaturamo-verdadeiro (Euphonia violacea) imita com perfeição até 16 cantos de aves Eduardo Gaspar/VC no TG Assim como folhear um guia de campo é um ótimo treinamento para criar memória visual que te permite identificar as aves visualmente, escutar vocalizações de aves em casa , ou até mesmo no som do carro, é uma ótima forma de treinar o ouvido. Uma forma prática de fazer isso é através do Wikiaves, que além de fotos é um banco de dados gigantesco de vocalizações de aves brasileiras. Minha sugestão é que você vá na lista de aves do seu estado e ordene as espécies pela quantidade de filhos disponíveis, para fazer isso basta clicar na palavra “filhos” no topo da coluna. Comece escutando as 10 primeiras aves com mais tomados, depois 20, 30 e por aí vai. Já em campo a dica principal para você aprender mais rapidamente o canto das aves é gravando as vocalizações que você não conhece, o que hoje em dia pode ser facilmente feito até mesmo com um celular. Depois de gravado o som que você pode reproduzi-lo com o auxílio de uma caixinha de som portátil e é muito provável que ave que estava vocalizando se aproxime para verificar se tem outro indivíduo invadindo seu território. Essa técnica de atração de aves que os observadores chamam de “playback” estimula em conjunto a memória auditiva e visual, o que ajuda muito a memorizar o som. Uirapuru-laranja surpreendeu o observador após tocar o playback do animal Paulo M. Silveira/Acervo Pessoal Finalmente, como tudo hoje em dia, é lógico que existem aplicativos para aprender o canto das aves. Mas dois em especial, BirNET e Merlin Bird Id, vão um passo à frente. Além de tocar os cantos de uma determinada espécie, eles podem identificar a espécie em tempo real gravada com o microfone do seu celular através de inteligência artificial. Pode-se acreditar, “não é feitiçaria, é tecnologia”… Embora as identificações estejam muito mais precisas nos Estados Unidos e na Europa, eu já testei ambos os aplicativos e confesso que fiquei impressionado com os acertos, especialmente de aves mais comuns. Ambos são gratuitos, pode baixar que é divertido. Pode acreditar, se você começar a prestar mais atenção aos filhos das aves, você vai descobrir um novo mundo e se dar conta que antes de passarinhar você passou a sua vida inteira ignorando um dos espetáculos mais impressionantes da natureza, a sinfonia das aves. *Luciano Lima é biólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente
Fonte G1