Sem charme, injustiçados, mas úteis

Campinas e Região



Sem os atrativos das aves e mamíferos, anfíbios e répteis são vítimas de crendices e superstições milenares, do desmatamento e das mudanças climáticas, apesar de serem importantes para o equilíbrio ambiental e fazerem do Brasil um dos campeões da herpetofauna. Pico-de-jaca é espécie rara Renato Gaiga Tarde da noite nos confins da Amazônia, mata adentro três milhas, você fica frente a frente com a maior cobra venenosa das Américas e maior víbora do mundo, a surucucu-pico-de-jaca! Qual seria a sua reação? Renato Gaiga vibrou com o raro achado: “Foi uma realização profissional. Um pico-de-jaca é um verdadeiro ‘mito’ da herpetologia!”. Renato é biólogo e herpetólogo, e não perdeu a chance de fotografar a Lachesis muta, de “apenas” 2,30 metros (a espécie chega a 4 metros). Encontrar pela primeira vez a temida pico-de-jaca foi um presente da natureza, quase uma compensada pelo duro trabalho do pesquisador atrás de anfíbios e répteis, as espécies que fazem parte da herpetofauna. “A vontade de andar pelo desconhecido atrás de espécies que poucas pessoas no mundo tiveram a oportunidade de observar em seus habitats é o grande barato do trabalho”, diz Renato. O pesquisador Vinícius da Silva, professor da Universidade Federal de Alfenas, MG (Unifal), também conhece bem o trabalho de campo. “Estar mergulhado muitas vezes até a cintura em um brejo cheio de mosquitos, cobras e sapos, contando apenas com a luz de uma lanterna de cabeça, pode ser um pesadelo para a maioria das pessoas, mas é o sonho sendo realizado pela maioria dos herpetólogos sem campo.” Registro de cobra-cipó-bicuda impressiona Renato Gaiga Pelos números, o Brasil precisa mesmo de muitos cientistas e de muita pesquisa de campo para conhecer a herpetofauna e mudar o modo de pensar e agir das pessoas em relação a cobras, lagartos, sapos e outros bichos que ainda provocam repulsa, nojo e medo. Anfíbios e répteis não são bonitos e fofinhos como os mamíferos, nem seres coloridos que cantam e dançam como as aves. Historicamente, a tradição religiosa judaico-cristã sempre associada aos seres rastejantes ao Mal, que devem ser vencidos, esmagados. Nos contos de fada, anfíbios e répteis são associados a bruxas, feitiços e maldições. O professor Vinícius observa que “até quando se transforma em príncipes, o sapo carrega uma simbologia de algo ruim e nojento, que exige um esforço sobre-humano da princesa para beijá-lo e assim quebrar o feitiço ou maldição.” Não deveria ser assim, do ponto de vista ambiental. “Por serem peças fundamentais no funcionamento da teia alimentar, consumindo uma variedade de insetos e servindo de presas para muitos grupos de vertebrados, seu declínio populacional pode afetar a estrutura trófica das comunidades”, explicou Renato Gaiga. Perereca-de-vidro Renato Gaiga O professor Vinícius destaca o papel dos anfíbios e répteis como bioindicadores da qualidade ambiental devido a vários aspectos da sua biologia. “Eles são particularmente sensíveis a perturbações no ambiente e se eles começarem a apresentar problemas, provavelmente é porque o ambiente é que está com problemas.” Como são ecotérmicos ou pecilotermos (o popular sangue frio), não toleram constante a temperatura do corpo, são acompanhados por variações climáticas e sofrem com os efeitos do aquecimento global. Diferentemente dos mamíferos e aves, pouco se movimentam e se deslocam e, em consequência, são mais considerados a qualquer mudança no seu micro-hábitat. E mais: os anfíbios têm a pele permeável, sensível a substâncias tóxicas e poluentes tanto do ar quanto da água porque têm dois ciclos de vida – anfíbio vem do grego amphi, dupla e bio, vida. Os números – aqui sombras – também jogam a favor destas seres nada glamorosos: depois dos peixes (30 mil espécies), vêm os anfíbios e répteis que, juntos somam 16 mil espécies, à frente das aves (10 mil) e mamíferos (4.600) . No Brasil, eles ficam ainda mais bem na cena: o país com maior riqueza de espécies de anfíbios e, em relação aos répteis, só ficam atrás – mas bem perto – da Austrália. “Porém, acredito que ocupará o primeiro lugar, várias espécies porque estão sendo descritas, outras terão aumento de distribuição para o País e muitos grupos estão sendo revisados ​​e, graças ao exame de DNA, serão escolhidos em espécies diferentes”, avalia Renato. Para o professor Vinícius, “isso aumenta muito a nossa responsabilidade na preservação desses animais, ainda mais com as fortes evidências de que ambos os grupos estão sofrendo declínios populacionais em várias partes do Planeta.” Répteis são temidos Renato Gaiga À descoberta, pela ciência, de novas espécies, contrapõem-se, no Brasil, as ameaças à herpetofauna. A principal delas é o desmatamento, e o professor Vinícius explica por quê: “Redução de florestas significa redução de água, um recurso particularmente importante para os anfíbios, pois a maioria depende dela para se reproduzir”. Menos mal é que agora anfíbios e répteis também fazem parte dos inventários e monitoramentos da fauna. Como sócio da empresa de consultoria ambiental Biotropica, Renato Gaiga passa longos períodos no mato, com muitas idas e vindas abrangendo todas as estações do ano para calcular os impactos ambientais que cada empreendimento vai gerar na herpetofauna e minimizar esses impactos com medidas compensatórias. “Para se preservar é preciso conhecer o que deve ser preservado e saber como se deve preservar”, diz o pesquisador. E para quem não se impressiona com os números nem com a importância da herpetofauna para o meio ambiente, os cientistas têm outros argumentos a favor do fim dos preconceitos e pela preservação das espécies: nós somos, remotos, descendentes dos anfíbios. Como a vida evoluiu da água para a terra, os anfíbios sobreviveram antes dos répteis e dos mamíferos. Espécie Allobates femoralis tem cores chamativas, mas não é venenosa Renato Gaiga/Arquivo Pessoal O professor Vinícius explica esta matéria: “Um descendente desses primeiros anfíbios foi então o ancestral que originou duas linhagens: a dos répteis (da qual os dinossauros são um dos descendentes ) ea dos mamíferos (da qual nós fazemos parte). A partir de um dinossauro ancestral, ou seja, de dentro dos dinossauros originaram-se as aves. Conclusão estarrecedora para a maioria das pessoas: as aves são dinossauros, portanto os dinossauros não estão extintos e, se os dinossauros são répteis, logo as aves também são répteis”. Não precisamos esquentar a cabeça para entender porque a galinha é um dinossauro ou porque devemos a nossa existência a um sapo, rã ou perereca dos tempos em que a vida só existia na água. Quando toparmos com a lagartixinha na parede, com a perereca no banheiro ou o sapo no quintal, para refrear nosso instinto zoocida basta lembrar que são seres vivos importantes para o equilíbrio do meio ambiente. Se comerem mosquitos e outros bichinhos já estarão nos retribuindo a preservação da vida. E se levarmos em conta que as serpentes controlam a população de ratos e os anfíbios e lagartos se alimentam de artrópodos (gafanhotos, caranguejos, aranhas, piolhos-de-cobra etc.) . CRENDICES Sapo da espécie Rhinella marina se finge de morto, comportamento de tanatose, para enganar predadores Renato Gaiga Séculos de avanço da ciência e divulgação do conhecimento não foram suficientes para pôr fim a crendices e superstições que envolvem a herpetofauna, o que em muitos casos custa a vida dos animais. Os anfíbios são as maiores vítimas. Ainda tem quem coloca um papel com o nome da pessoa amada e costura a boca do sapo. Ou enterra o bicho vivo com o nome do desafeto. Fazer o sapo explodir com cigarro na boca – ele não expelir a fumaça – é outra crueldade. Jogar sal no sapo para espantá-lo também é uma maldade, explica Renato Gaiga: “A pele dele é bem permeável e o sal desidratado, causando queimadura”. Terra da Gente: lagartixas nunca fecham os olhos por não terem dormido Renato Gaiga Entre as crendices, uma das mais comuns é a de que quem toca em lagartixa, sapo ou cobra ou veste uma roupa tocada por alguns desses animais pega cobreiro. “Mentira! Se fosse assim, eu já estava verde e com escamas na pele!”, rebate Renato, que anda por todos os biomas brasileiros coletando estes animais para pesquisa. Outro erro é achar que sapo esguicha veneno. “Nenhum sapo tem capacidade para esguichar veneno”, afirma Vinícius da Silva. “O que os sapos esguicham é urina, em um reflexo fisiológico de resposta ao estresse de serem manipulados. O mesmo ocorre conosco, quando levamos um susto muito intenso e literalmente urinamos nas calças”. Além disso, o veneno do sapo é inócuo para o homem. “A única exceção são os sapinhos amazônicos extremamente coloridos da família Dendrobatidae”, esclarece o professor. Sapo fingem-se de mortos para enganar predadores; comportamento conhecido como tanatose Renato Gaiga Outro mito envolve cobra, que sente o cheiro do leite materno, mama na mulher e, para a mãe não perceber, oferece a ponta do rabo para o bebê sugar. Nem que o animal quisesse, conseguiria, garante Renato. “Primeiro, cobra não é mamífero; segundo, não tem músculos na boca que deixaram a sucção. É lenda braba”. Peçonhenta, serpente inocula o veneno para predar pequenos roedores, aves e até outras cobras Renato Gaiga/Arquivo Pessoal “Um pouco é tradição cultural, mas mesmo isso é resultado de trigo”, sentença do professor Vinícius. “Mas eu acredito muito no papel da educação e no efeito cascata que isso pode promover”, completa. Renato concorda com a solução: “Acho que uma boa educação ambiental pode resolver muita coisa. E a educação tem que atingir os filhos e os pais”. Sapo, rã ou perereca? Rã-de-corredeira vocaliza durante o ano todo, porém auge de atividade é no período chuvoso Renato Gaiga A herpetofauna é mais difícil de ser compreendida do que muita gente pensa. alguns anfíbios não começam a vida na água; nascem miniaturas de adultos de ovos depositados na terra ecológica. Há crocodilos que não rastejam – como quase todos os répteis –, mas galopam. Visualmente, o lagarto Bachia dorbigny parece serpente: a espécie é ápoda, isto é, tem os membros muito reduzidos. Até os nomes populares podem confundir: a popular cobra-de-duas-cabeças (Amphisbaena alba) não é cobra, mas lagarto. O sapo-ferreiro (Hypsiboas faber) não é sapo, e a rã-de-vidro (família Centrolenidae) não é rã: as duas são pererecas. Também nem sempre dá para garantir que o anuro é sapo porque está no chão, rã porque está na água e perereca porque está na parede ou na árvore. O herpetólogo Renato Gaiga dá dicas para um leigo saber quem é quem entre os anfíbios: Sapo: pele seca e áspera. Rã: pele lisa e úmida, dedos finos e longos. Perereca: pele lisa ou áspera com discos adesivos nas pontas dos dedos. Exóticas e concorrentes Não bastasse a perda de habitat por causa dos desmatamentos e queimadas, algumas espécies ainda têm que lutar por espaço e comida com as invasoras. No Brasil, já existem várias variantes diferenciadas na natureza das chamadas rãs-touro (Lithobates catesbeianus), espécie da América do Norte criada em ranários, e que acaba escapando ou sendo deliberadamente solta pelos criadores, segundo o professor Vinícius da Silva. Outra espécie exótica é o cágado tigre-d’água-norte-americano (Trachemys scripta), aquela tartaruguinha verde de água doce comercializada ainda filhote e que geralmente é solta na natureza quando cresce. Vinícius lembra que, além disso, essa espécie exótica acabou estimulando a coleta e o comércio ilegal da espécie nativa do sul do Brasil, a Trachemys dorbignyi, com a qual se parece muito.

Fonte G1

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