Crise econômica e defasagem do ensino público provocam evasão de até 88% em cursinhos populares da região de Campinas

Campinas e Região



Índice também reflete no baixo número inscritos da rede pública nos vestibulares da Unicamp e Enem. Representantes das iniciativas demonstraram preocupação com o futuro do acesso de estudantes de baixa renda ao ensino superior. Aula do Cursinho TRIU antes da pandemia de Covid-19, em Campinas (SP), em 2019. Carlos Alberto Diniz/Cursinho TRIU Os cursinhos populares da região de Campinas (SP), iniciativas que oferecem pré-vestibular gratuitas ou a baixo custo para estudantes da rede pública, viram a evasão dos alunos dar um salto em 2022. Além da baixa procura pelas vagas, a queda de estudantes matriculados ao longo dos meses chega até 88,9%. “Para quem está vivendo ‘n’ dificuldades, exclusões, precarizações é difícil o ensino superior estar no horizonte da classe popular”, avalia Carlos Alberto Diniz, o Cabé, coordenador do Cursinho Triu, em Barão Geraldo. Essas dificuldades, exclusões e precarizações passam, na avaliação de representa esses cursinhos, por questões socioeconômicas, pela pandemia de Covid-19 e também pela defasagem do ensino público. Somados, esses fatores resultam no aumento de resistências que nunca tive antes. “Essa dificuldade de permanecer já é uma regra nos cursinhos, porque o aluno que vem da rede pública não está acostumado com o ritmo que o cursinho pré-vestibular exige para se passar numa universidade pública. Mas esse ano, é uma evasão acima do que deveria ser”, diz Marcelo Lima, coordenador do Cursinho Alternativo Herbert de Souza, que atende estudantes da região da Vila União. O Herbert de Souza ofereceu 270 vagas na modalidade pré-vestibular. Dos 110 inscritos, 58 experimentaram as aulas, 47 foram até às férias de julho, 30 foram até à época das primeiras fases do vestibular e apenas dez continuam até o momento. Se considerado o total de alunos que seguiram de fato a preparação pré-vestibular, a queda é de 82,7%. Em relação ao número de inscritos, o número caiu 90,9%. No distrito de Barão Geraldo, o cenário não era diferente. O Cursinho Triu viu as salas de aulas perderem alunos tanto presencialmente quanto virtualmente. Na modalidade de Ensino à Distância, 90 alunos se inscreveram, mas apenas dez continuaram até o fim do ano. Em termos de porcentagem, 88,9% dos alunos desistiram no meio do caminho. “A evasão desses 90 foi muito mais veloz e gigante que os presenciais”, relata Cabé. Na modalidade presencial, pouco mais da metade das vagas oferecidas foram ocupadas: 66 alunos se inscreveram para as 120 vagas. A baixa procura, segundo o coordenador, já era sintomática. “Em anos anteriores à pandemia, a gente tinha cento e sessenta estudantes na nossa média e, inclusive, com lista de espera”, diz Cabé. Entretanto, os 66 alunos foram atendidos até restarem apenas 20. Uma queda de 66,7%. Em Valinhos (SP), a situação se repete. “É o ano de maior evasão em muitos anos”, diz Marcelo Yoshida, coordenador do Cursinho Popular Contexto, que ofereceu 30 vagas no começo do ano. Hoje, apenas dez estudantes acompanham as aulas, o que representa uma queda de 66,7%. ” Menos candidatos nos vestibulares O esvaziamento dessas salas de aula também reflete nos números dos principais vestibulares. A Unicamp teve o menor índice de candidatos da rede pública de ensino em seis anos. Já o Enem, principal porta de entrada ao ensino superior no país, teve um aumento de 9% em relação à edição anterior, mas permanece com o total de inscritos abaixo dos números pré-pandemia. Para o Zilda Arns, cursinho popular organizado por alunos da Unicamp e sediado na Faculdade de Ciências Médicas, a defasagem e o desânimo “A evasão de nossos alunos acompanham as quedas desse perfil de público nos principais vestibulares”, afirmou ao g1. Essas desistências causam grande preocupação nos representantes dos cursinhos populares. “Para muita gente, seria a única cartada. E quando não dá, é tanta permitida por causa das tantas barreiras que a pessoa enfrenta na vida , é um processo tão violento, que muito provavelmente ela não vai voltar a procurar o caminho da educação”, diz Cabé. Crise econômica A crise econômica provocada pela pandemia de Covid-19 impactou, principalmente, as famílias de baixa renda. Para o coordenador Yoshida, a evasão dos cursinhos populares é reflexo deste contexto, já que muitos estudantes abandonam as aulas para complementar a renda familiar. “Ter uma faculdade e uma possibilidade de emprego com uma remuneração maior não é mais uma prioridade, porque a prioridade agora é a sobrevivência”, diz. Na maior parte das vezes, as resistências são questões que estão fora da área de atuação dos cursinhos. A necessidade de conciliar um trabalho que, muitas vezes, é integral e presencial, por exemplo, fez com que os alunos sofressem mais dificuldades para acompanhar as aulas e os conteúdos, mesmo que as iniciativas oferecessem apoio psicológico, social e pedagógico. “Era, de fato, uma situação de necessidade primária, de sobrevivência, de ganhar pão, de ter que trabalhar. O plano de estudos fica em segundo lugar”, diz Cabé, coordenadora do Triu. O Zilda Arns relata a mesma experiência. “ Neste período, muitos dos nossos alunos precisaram começar a trabalhar para ajudar no sustento da casa, fazendo com que deixassem a escola de lado”, diz o cursinho. Equipe do Cursinho Popular Zilda Arns, formada por estudantes da Unicamp Acervo Zilda Arns A cearense Fátima Ribeiro, 22 anos, foi uma das estudantes que teve de escolher entre o trabalho e o cursinho. “É uma escolha muito difícil”, diz ela, que hoje trabalha em uma livraria em um shopping de Campinas. Ela, que é apaixonada pelos dialetos de sua região natal, pretende cursar Linguística na Unicamp. “Eu quero estudar porque meu povo fala assim”, explica a estudante. Fátima foi, por duas vezes, aluna do Cursinho Triu. Em 2021, em meio à pandemia, não conseguiu se adaptar ao ensino remoto. “Faltou autodisciplina lina”, afirma, além de contar que a saudade da família e o período de isolamento causado pela pandemia de Covid-19 abalaram o psicológico dela e da companheira. “Nenhuma estava de boa para ser ajuda da outra”, diz. Em 2022, ela tentou se matricular novamente, mas precisou desistir do cursinho quando viu que a bolsa que a companheira recebe pelo mestrado já não era mais suficiente para pagar as despesas da casa. Hoje, ela concilia o trabalho com a faculdade de Letras, já que conseguiu uma bolsa Prouni em uma instituição particular, além de fazer faxinas nas folgas para complementar a renda. Mesmo assim, o sonho de cursar a Unicamp foi apenas adiado: ela está na segunda fase do vestibular e pretende, se preciso, voltar a se matricular no cursinho popular, caso consiga mudar de turno no trabalho. “Quando eu entrei no ônibus da Unicamp, eu falei: ‘é aqui que eu quero’. Foi apaixonante”, diz. Fátima Ribeiro, estudante que sonha em cursar Linguística na Unicamp. Arquivo Pessoal A crise econômica afeta até mesmo o pagamento do transporte até as salas de aula. “O grande impacto econômico dos alunos de cursinhos populares, que têm impedido economicamente muitos terem acesso às aulas, é o transporte público”, afirma Lima, coordenador do Cursinho Alternativo Herbert de Souza. Tanto Lima quanto Cabé, do Triu, sugere à Prefeitura de Campinas a oferta de um passivo na passagem de ônibus. “O que a gente pede é que se inclui no escopo de transporte escolar o estudante de cursinhos populares, que é uma política pública de fato”, explica Cabé. Apesar das tentativas de diálogo com a administração municipal, eles não tiveram encontrado o apoio necessário dentro do legislativo e executivo. Lima estima que os gastos com o deslocamento para ir até o Herbert de Souza chegaram a cerca de R$ 250, ou seja, 26,2% do salário mínimo brasileiro, fixado em R$ 1.212. O g1 questionou a administração municipal sobre a meia-tarifa dos estudantes dos cursinhos populares e a Prefeitura de Campinas informou que todas as gratuidades do sistema já estão definidas por meio de lei. Para ampliar, é necessário que haja uma nova lei que aponte de onde sairão os aportes financeiros e que seja aprovado pela Câmara Municipal. Acesso ao campus da Unicamp, em Campinas Antoninho Perri / Unicamp Defasagem na rede pública Além da questão econômica, outro fator influencia na trajetória de Fátima rumo ao ensino superior público: a defasagem no ensino público ao longo de sua vida. “Quando entrei no Triu, falei: ‘nossa, quanto me faltou lá’. Tem coisas simples de matemática, por exemplo, que só aprendi no cursinho”, revela. “Se você compara o ensino médio público no Brasil com o que você tem que saber para passar na Unicamp, vai ver que é quase nada de estrutura”, diz Fátima. A missão dos cursinhos populares de transporte esse abismo entre o ensino médio público e o ensino superior público também foi dificultado por dois anos de pandemia. “As escolas públicas funcionaram de forma muito precarizada, com o aluno sendo excluído do processo de escolarização. E isso impactou muito além do que a gente estava imaginando”, diz Cabé, coordenador do Triu. Para Lima, do Cursinho Herbert de Souza, esses anos impactaram até mesmo na visão que os estudantes têm do ensino superior. “O aluno que tá no 3º ano e que vai prestar vestibular esse ano, é o aluno que não teve o ensino médio [presencial]”, diz ele, que busca promover atividades em escolas da região para falar de vestibulares. “Muitos ali não sabem nem o que é a Unicamp”. A equipe do cursinho Triu também tem se movimentado para percorrer escolas públicas e incentivar que os alunos os procurem, mas, assim como Lima, Cabé diz que não sabe como vai ser o ano que vem, apesar da esperança. “Acaba que o cursinho popular é, talvez, o único lugar que essas pessoas que tiveram processos muito precarizados de escolarização no ensino médio podem buscar a educação como caminho para recuperar as perdas”, diz Cabé. Carlos Alberto Diniz, o Cabé, durante aula no Cursinho Triu, em Barão Geraldo, Campinas. Cabé Diniz/Redes Sociais VÍDEOS: Tudo sobre Campinas e região Veja mais notícias da região no g1 Campinas

Fonte G1

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