Era 13 de junho de 1942 quando o avião do Esquadrão 83 da Marinha dos Estados Unidos tentava pousar em solo potiguar, mais precisamente em Parnamirim, no que depois se tornou o Aeroporto Internacional Augusto Severo. O piloto Chester Hugh Skidmore conduzia a máquina com mais nove tripulantes, todos combatentes da Segunda Guerra Mundial. Em meio ao conflito da Segunda Guerra Mundial, os aviões dos Estados Unidos pousavam em Natal para serem reabastecidos e então voarem para combate em outros países. Com isso, se estabeleceu no Rio Grande do Norte a maior base militar norte-americana fora dos EUA. O piloto do avião 7252, entretanto, enfrentou as intempéries do clima perto da chegada.
As condições de voo eram indesejáveis. À noite, quase não se via nada, nem sequer a lua. A forte chuva que caía no Estado fez Skidmore aumentar a potência do motor para 70%. Sem enxergar quase nada — e sem a tecnologia moderna atual que permite que os pilotos se orientem por aparelhos digitais —, só restava confiar na sua própria visão.
Com a baixa visibilidade, porém, o avião voava baixo, a 600 pés — equivalente a 1800 metros —, muito próximo do mar. Não deu outra. “Voando a baixa altitude sob chuva forte e ar agitado, o piloto perdeu temporariamente o horizonte e colocou o avião em planagem na água”, descreve o relatório da US Navy, a Marinha Americana. Naquele dia, a aeronave militar americana foi considerada desaparecida, e as causas da queda classificadas como probabilidade de “50% clima, 50% baixa visibilidade”. O documento cravava: “total loss”, ou perda total.
Dos 10 militares que estavam no avião, sete morreram, incluindo o piloto. Agora, quase 80 anos depois daquele 13 de junho, um pesquisador e um mergulhador localizaram na região de Barra de Maxaranguape o que seriam os destroços do Catalina, o modelo vítima do acidente. A diferença para outros destroços no mar potiguar é que o 7552 teria sido o primeiro avião americano a cair no Brasil. A data do achado também traz sua particularidade: foi em 6 de junho deste mês, exatamente uma semana antes de completar oito décadas de desaparecimento.
É o que aponta Frederico Nicolau, o “Fred”, curador do Centro Cultural Trampolim da Vitória e apaixonado por aviação. Nascido e criado em São Paulo, Fred é formado em Desenho Industrial e sempre gostou do tema. Em 2003, época em que a internet começava a despontar no Brasil, entrou em um grupo sobre aeromodelismo de Washington DC, capital dos EUA. Lá, por meio de outro integrante, conheceu um homem que afirmava que esteve em Natal durante a Segunda Guerra e desconfiou.
“Não estava acreditando muito na história dele porque eu tinha um monte de livro de história da aviação, de militar, da Força Aérea Americana, história da guerra, e nenhum falava nada das coisas que ele estava dizendo. Nenhum falava que tiveram bases americanas no Brasil na guerra. Eu fui dando corda para ele falar mais coisas, e ele foi mandando fotos”, lembra.
Nas conversas com Billie Goodell, o tal militar americano, e nos registros enviados por ele, Nicolau finalmente se convenceu de que o ex-combatente estava falando a verdade. Nos anos seguintes, foi colhendo cada vez mais materiais. Todo esse acervo, que hoje está presente no Centro Cultural, inclui medalhas, cartas de soldados, fotografias, uniformes e até armas. “Eu pesquisei esse assunto nos Estados Unidos, em universidades, na internet, com outras pessoas. Eu passo a vida pesquisando”, descreve.
Nas suas andanças virtuais e presenciais, Nicolau conheceu um site americano que vendia relatórios de acidentes de aeronave, e comprou alguns deles sobre acidentes no Brasil. “Então a gente sabia que existia um acidente que teve no Brasil, aqui em Natal, de um Catalina do Esquadrão 83, tinha tudo escrito, assim como vários outros”, diz. Com os documentos em mãos, Fred começou a procurar pescadores e mergulhadores que pudessem ter mais informações sobre os restos da Segunda Guerra. Uma das dificuldades era a relutância das pessoas em contar onde estavam exatamente os destroços que conheciam.
Pescador ajuda a localizar destroços
“Aí eu fui para Muriú um dia e tinha um pescador lá que estava meio bêbado e começou a contar: ‘tem uns avião sim, mas os caras descem lá e tiram os pedaços para vender para comprar pinga’”, ri. Já com os mergulhadores, a dificuldade era outra. Como os destroços se tornaram um refúgio para os peixes, é um local fácil de encontrar vários deles. Assim, no trabalho, os mergulhadores levavam os turistas para lá, certo de que encontrariam um cenário bonito. “Os caras não falavam porque aquilo virava uma reserva particular deles, e eles não entregavam”.
Tudo mudou quando ele conheceu o Coronel Hipólito, um velho oficial da Força Aérea Brasileira (FAB) que relatou a queda de uma aeronave em que ele estava, na região entre Muriú, Maxarangape e Maracajaú. “Como eu não tinha ouvido falar de ninguém que achou um B-25, pensei: ‘deve estar inteiro ainda’. Porque os outros, nas imagens, é tudo sucata já. Ao longo de anos e anos do pessoal arrancando pedaço para vender, era uma pilha de sucata. Você não vê mais que é um avião”, afirma.
Tendo uma região de busca certa, Nicolau conseguiu também o apoio do mergulhador Paul Bouffis, disposto a ajudar nas buscas pelo avião B-25. “Nós tentamos ao longo do tempo e não conseguíamos nada. Até que ele [Paul] foi dar um curso em Maracajaú essa semana e num dos lugares que mergulhou, tinha um destroço ali dentro. Ele tirou foto, me mandou e falou ‘olha, tem esse treco aqui, só que isso não é um avião’”.
O motivo da desconfiança é que, para um leigo, não era mais possível identificar o que era. “E eu comecei a olhar as imagens e falei: ‘cara, isso daí não é B-25. Será que não é aquele Catalina do relatório que a gente tem?’”, relembra. Ao analisar as imagens tiradas por Boffis, o pesquisador constatou que de fato era. “Esse avião está a 1 km mar adentro de um lugar chamado Ponta Gorda, onde tem a Árvore do Amor. É entre Barra de Maxaranguape e Maracajaú, bem no meio dos dois”, afirma.
Para Bouffis, se deparar com os destroços de um avião de combate traz uma sensação estranha, “porque a gente fica sempre com aquela ideia de que quando você vai ver um avião, vai ver aquele charuto. Mas você imagina quando esse avião estava voando, e essa parte trágica que acontece”, diz Paul. “Então aquilo lá na verdade é um cemitério, um lugar a ser respeitado”, fala.
“Foi meio loteria, muita coincidência”, relata Nicolau. “Mesmo porque a gente não estava procurando esse avião. A gente estava procurando o B-25, e nada do B-25 ainda”. Embora convicto que se trata do avião do Esquadrão 83, o pesquisador ainda não tem uma confirmação oficial das autoridades, mas diz que já comunicou ao Consulado Americano e ao Escritório Militar Americano em Brasília-DF. “Existe a possibilidade de algum dia vir esse pessoal americano para cá, mergulhar, cavar o mar para ver se acha algum pedaço de alguma coisa lá dentro”, diz.
História é narrada em livro
O episódio do desastre é narrado também pelo escritor Paulo de Viveiros, no livro História da Aviação no Rio Grande do Norte. “Os sobreviventes nada souberam explicar sobre a causa do desastre; notaram, apenas, um grande estalido, como se o aparelho se quebrasse ao meio, e a corrida louca para o fundo do mar: agarraram-se, no meio das ondas, numa asa que se separara do aparelho e viram, na escuridão da noite, submergir-se o resto da aeronave, com os seis infelizes companheiros logo sepultados no fundo das águas”, descreve o texto intitulado “O desastre do Catalina”. Embora Viveiros aponte seis mortos, Fred afirma que o registro correto — de sete mortos — é do relatório da Marinha Americana.
Segundo o pesquisador, os três sobreviventes foram resgatados por pescadores de Barra do Maxaranguape, que os abrigaram durante a noite. O relato também está presente na obra de Viveiros. “No dia imediato, 14 de junho, foram conduzidos para Natal. Na segunda-feira seguinte, o cônsul estadunidense, em companhia do observador naval de seu país e do chefe da esquadrilha, esteve em Palácio do Governo, onde foi agradecer ao Interventor a solícita acolhida dispensada pelos pescadores aos sobreviventes do desastre.”
Nicolau agora se vê feliz com o achado. O curador, entretanto, diz que não pretende remover os destroços para levar para o Centro Cultural Trampolim da Vitória. “O objetivo da gente desde o começo sempre foi preservar a história. Como é que você preserva a história? Você conta o que passou para os que estão chegando.”
Fred planeja uma cerimônia de homenagem aos mortos em Ponta Gorda. “Estaremos lá para depositar algumas flores em homenagem a esses marinheiros e também lembrar o tempo em que nossas duas nações combateram juntas um inimigo externo comum”. O ato será nesta segunda-feira (13), por volta das 11h, na data que marca os exatos 80 anos da queda do avião.